
As farófias feitas à antiga, cozidas em leite perfumado com casca de limão, bem doces e polvilhadas com canela, são hoje uma sobremesa injustamente esquecida, mas nem por isso menos sedutora.
Encarada como doce de facilidade extrema, as farófias têm aspetos a observar na sua preparação de modo a que “desapareça” na boca como deve, qual nuvem doce.
Apesar desta suposta facilidade, é frequente haver fracassos rotundos e inexplicados com travessas inteiras a seguir para o lixo com as farófias abatidas e duras como borracha e ninguém a saber o porquê.
É que tem mesmo muito que se lhe diga, a confecção de uma farófia.
- 6 Ovos muito frescos *
- 175g de Açúcar
- 1 pitada de Sal
- 1l de Leite
- Casca de 1 Limão
- 1 colher de sopa de Maizena
- Canela em pó
- Separe cuidadosamente as claras das gemas e certifique-se que não há qualquer vestígio de gema nas claras.
- Ponha o leite ao lume num tacho largo, com a casca do limão e 125g do açúcar. Deixe ferver.
- Adicione uma pitada de sal às claras e bata-as até estarem em castelo pouco firme.
- Nesta altura adicione o restante açúcar (50g) e continue a bater até obter um merengue muito firme.
- Com o auxílio de uma colher grande, ponha colheradas de merengue no leite, que deve estar apenas no limiar da fervura e com o lume no mínimo. Este pormenor é fulcral: as claras cozem a 60ºC e o calor demasiado faz as farófias ficarem murchas e emborrachadas. Coza-as rigorosamente 20 segundos de um lado e cerca de 15 do outro.
- Retire-as imediatamente do leite para escorrerem.
- Quando tiver cozido a última, coe o leite, deixe amornar, junte-lhe as gemas ligeiramente mexidas mas não batidas, a colher de Maizena (que não é verdadeiramente necessária mas ajuda a evitar acidentes de talhar o leite creme), e leve de novo ao lume para espessar.
- Disponha-as num tabuleiro fundo, regue-as com este molho que é, na verdade, um leite creme.
- Deixe arrefecer completamente e polvilhe então com abundante canela.
- Nota: * A farófia perfeita deve ter uma camada exterior firme mas o interior deve manter-se suave, pronto a desfazer-se na boca a cada colherada. Isto faz com que parte das claras não sejam sujeitas a temperaturas de segurança microbiológica e portanto só devem usar-se ovos muito frescos e de absoluta confiança.
Veja também:

Farófias
Tenho receio de algumas vezes utilizar a palavra “simples” para classificar confeções culinárias, como é o caso das farófias. Da sua aparência simples poderão resultar preparações doceiras de invulgar qualidade. E, felizmente, há uma nova geração de cozinheiros que está a dar a devida importância a esta sobremesa.
Tentei perceber a origem das farófias mas não consegui grandes resultados. A receita mais antiga de uma preparação idêntica à das farófias é originária do Convento de Nossa Senhora da Conceição, de Loulé, e que é chamada de “Nuvens”.
O processo de fabrico é semelhante. Depois de bater claras em castelo, cozem-se à colherada em leite, com um pau de canela, e depois retiram-se com uma escumadeira. Com o leite sobrante juntam-se gemas de ovo e faz-se um creme que vai cobrir as claras cozidas.
Polvilha-se com nozes e amêndoas que se pisaram em almofariz. Nestas receitas, que muitas vezes eram apenas ajudas de memória, falta um produto fundamental que é o açúcar, que talvez não seja mencionado pela evidência da sua utilização.
Primeiro nas claras ao serem batidas, depois no leite para ferver e cozer as claras. Não tendo encontrado outras receitas anteriores parece-me que se poderá inferir que a tradição da “farófias” ou “nuvens” não deverá ser anterior ao século XVIII. Ou haveria tradição, e não seria obra de registos por ser considerado um doce fácil, e de prática doméstica.
Genericamente, pelo receituário que encontramos pelas várias regiões, podemos definir “farófias” como um doce que é feito a partir de claras de ovo batidas em castelo às quais se adiciona açúcar, depois cozidas em leite açucarado.
No leite que sobra da cozedura das claras, juntam-se gemas de ovos, ao lume, até engrossar e com este creme cobrem-se as claras.
Por fim, habitualmente, polvilham-se com canela em pó. Depois vamos encontrar algumas variações como colocar no leite pau de canela, vagem de baunilha ou casca de limão.
Quanto às coberturas, para além do creme com as gemas, também encontramos caramelo, ovos-moles e lâminas de amêndoa.
Curiosamente, no primeiro grande livro de doçaria do Brasil, Dicionário do Doceiro Brasileiro, 1892, não se encontram farófias nem “ovos nevados” como se vai encontrar posteriormente em receituários brasileiros.
Mas no Brasil fazem-se farófias, confirmado por Maria Lucia Gomensoro, no seu Pequeno Dicionário de Gastronomia que no verbete “farófia” remete para “ovos nevados” como sendo um doce de origem portuguesa, com descrição idêntica à das nossas farófias.
Muito estranho é o texto de Luis da Câmara Cascudo quando tenta encontrar similitude nos termos “farofa” e farofia”, fazendo crer que o termo tem a ver com a localização geográfica e não o conteúdo diferenciado.
Chega mesmo a afirmar que “… Angola inteira a farofa é idêntica à que comemos no Brasil. Em Portugal, sob o título de farófia há o que dizemos ovos nevados…”. Não há, de facto, nenhuma aproximação ou origem dos termos farofa e farófia. Confuso é, no entanto, que Cláudio Fornari, no seu Dicionário – Almanaque de Comes & Bebes, no verbete farófia tem duas significações:
- “1. Doce de claras batidas com açúcar e canela” e “
- 2. Comida feita com farinha de pau misturada com qualquer molho.
Farofa”. Mas também as autoras Maria Adelina Monteiro Grilo e Margarida Futscher Pereira, sob o pseudónimo M.A.M., no extraordinário livro Cozinha do Mundo Português, 1962, apresentam uma Farófia de Angolana que é com farinha de pau e uma Farófia que são as que me quero referir nesta crónica.
Detalhe é que o leite ferve com vagem de baunilha. Portanto são os autores que assumem a mesma palavra para designações distintas.
Ainda relacionado com o Brasil, encontramos uma receita de “Basófias cozidas à brasileira” no livro Arte de Cozinha de João da Mata, 1876, feita à base de claras que cozem no formo e são completadas com doce de ovos.
A primeira receita de farófias que encontrei publicada em livro foi no Tratado Completo de Cozinha e de Copa, de Carlos Bento da Maia, 1904, com uma forma de confeção idêntica às atuais. Refere, no entanto, que “Este doce faz-se geralmente para aproveitamento das claras que sobram do fabrico de outros doces.”
Seguidamente, em 1925, Isalita, pseudónimo de Maria Isabel Campos Henriques, publica uma receita no livro Doces e Cozinhados, de Leite creme com farófias na qual é dada muita importância ao leite creme delicado que irá cobrir as claras batidas com açúcar, e cozidas em leite, terminando polvilhadas com canela em pó.
Curiosamente vou encontrar a mesma designação num invulgar livro “Cooking in Portugal”, editado inicialmente em 1953 nos Estados Unidos, e em Portugal em 1963, produzido pelas American Women of Lisbon, e oferecido à esposa do Presidente da República para que a sua venda reverta para instituições de caridade portuguesa. Ora, esta publicação, apresenta uma receita idêntica à de Isalita de 1925!
O primeiro livro que surge em Portugal destinado a cozinheiros profissionais é A Cozinha Ideal, de Manuel Ferreira, 1933, onde nos apresenta duas receitas: Farófias e Farófias à Inglesa.
Uma das características deste livro é o autor traduzir todos os títulos das receitas para francês, língua na moda para as designações culinárias.
Traduz assim as farófias por “Oeufs à la Neige”. Pela linguagem se percebe que o público deste livro são profissionais ou para a sua formação. Começa por explicar que a s farófias se fazem a partir da técnica de merengagem: mistura de claras batidas com açúcar.
Depois cozem-se em leite açucarado e com baunilha. Seguidamente cobrem-se com molho à inglesa e polvilham-se com canela.
Quanto às Farófias à Inglesa são as farófias tradicionais às quais se junta na cobertura doce de alperce.
Havendo a designação francesa para farófias, de “Oeufs à la Neige”, fui tentar descobrir a sua origem, também em França. No Le Guide Culinaire, de Escoffier, 1902, já encontramos a receita onde, possivelmente, Manuel Ferreira se foi inspirar. No Larousse Gastronomique de 1928 nada consta.
Curiosamente no Dictionnaire de l’ académie dês Gastronomes, de 1962, nos aparece novamente a receita idêntica à de Escoffier.
No recente Dictionnaire du Gastronome, 2008, a receita não aparece apesar de afirmar que existem seiscentas formas de confecionar ovos.
Segundo várias fontes não é, hoje em dia, uma receita facilmente apresentada em restaurantes franceses.
Voltemos às referências em Portugal depois de Manuel Ferreira. Olleboma, na sua Culinária Portuguesa, 1936, apresenta uma receita de “Tabefes ou Nuvens” que são as nossas farófias com a particularidade de utilizar um pouco de fécula de batata para engrossar o molho das gemas e não polvilha, no final, com canela.
Laura Santos, no livro O Mestre Cozinheiro, 1955, dá uma receita de farófias em tudo idêntica na forma de confeção mas com uma curiosidade final, que também poderá ser um erro tipográfico sugerindo “
…Servem-se numa travessa as farófias sobre o creme.”, quando acontece exatamente o contrário, o creme sobre as farófias.
Mais recentemente Maria de Lourdes Modesto, na Cozinha Tradicional Portuguesa, 1982, indica a receita de farófias como oriunda da região da Estremadura, no leite usa casca de limão, para engrossar o creme junta farinha maisena e polvilha com canela.
Também Manuel Luis Goucha, no livro Coisas de Açúcar, 1987, nos dá uma receita de farófias na qual o leite ferve com casca de limão, não usa farinha para engrossar o leite, mas gosto especialmente de uma expressão que transcrevo:
“É doce estremenho e pena é que o não façam quantos preferem utilizar claras sobrantes no preparamento de”molotofs” e de outras pegajosices.”
Independentemente de ser origem francesa ou não, certo é que já é uma tradição portuguesa, que não se fica pela Estremadura e se confeciona em todo o País. Não se esqueçam que acompanhadas por um vinho generoso, saberão ainda melhor.
© Virgílio Nogueiro Gomes
